Balaão e a Teologia sob Demanda
Aquele que se dizia "o profeta dos olhos abertos" era, na verdade, o teólogo do olho grande e gordo
Balaão era um profeta sagaz e um tanto matreiro. Se fosse apenas profeta, a desgraça não seria tanta. Acontece, porém, que o filho de Beor era ainda um teólogo competente. Torcendo um artigo de fé aqui, minimizando uma proposição doutrinária mais além, ia ele enchendo as algibeiras com o ouro dos incautos. E os seus arremedos, justiça seja feita, eram capazes de convencer até os mais avisados.
Embora domiciliado em Petor, às margens do Eufrates, fazia, vez por outra, uns volteios pelo Oriente Médio, a fim de oferecer serviços e préstimos. Ontem, tanto quanto hoje, havia sempre alguém querendo amaldiçoar alguém. E, para isso, estava disposto a pagar-lhe muito bem.
Enfim, o profeta Balaão teologizava sob demanda. Assemelhava-se ao escritor que, certa vez, recebeu a incumbência de escrever um artigo sobre uma polêmica autoridade. Ao receber o dinheiro, perguntou: “A matéria é a favor ou contra?”
Suas mandingas eram bem articuladas e certeiras. Amaldiçoou Balaão alguém? Amaldiçoado está! Foi por isso que Balaque trouxe-o de tão longe e inflacionou-lhe generosamente o cachê. Afinal, o rei moabita estava caído de angústias com a aproximação dos filhos de Israel que, desde o longínquo Sinai, marchavam resolutamente às suas portas. E, pelo ritmo de seu avanço, nenhum exército seria capaz de frear-lhe a andadura. Segundo imaginava, aquela gente, de tão numerosa, lamberia todos os recursos de sua terra. E isso ele jamais haveria de admitir.
Balaque bem sabia que Balaão era venal e sem caráter. Todavia, era competente no que fazia e tinha um preço até razoável. Além de venal, pagável. Não seria difícil contratá-lo.
Já advertido pelo Senhor, o profeta, de início, mostrou alguma refração
às propostas do moabita. Como bom teólogo, sabia que é impossível
florescer maldições onde as bênçãos já frutificam. Por isso, todas as
vezes que armava o cenário para amaldiçoar Israel, acabava por
abençoá-lo. E isso começou a impacientar Balaque. Afinal, contratara-o
para destruir os hebreus. Mas o feiticeiro, inexplicavelmente, estava
virando-se contra o dono do feitiço.
O interessante é que Balaão possuía também um lado poeta e lírico que, elegantemente, deixa transparecer nas profecias que, por três vezes, profere sobre o futuro messiânico de Jacó. Ele sabia trabalhar tão bem as palavras, que Moisés foi inspirado a registrá-las no quarto livro do Pentateuco. Num dos trechos de seu maravilhoso e subido poema, chega a ser autobiográfico: “Então, proferiu a sua palavra e disse: Palavra de Balaão, filho de Beor, palavra do homem de olhos abertos, palavra daquele que ouve os ditos de Deus e sabe a ciência do Altíssimo; daquele que tem a visão do Todo-Poderoso e prostra-se, porém de olhos abertos: Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro que ferirá as têmporas de Moabe e destruirá todos os filhos de Sete” (Nm 24.15-17).
A ganância, contudo, veio a ter mais rimas que a poesia. Na verdade, Balaão não estava disposto a perder o ouro de Balaque; oportunidade como aquela não costuma repetir-se. Não é sempre que se tem um Êxodo pela frente, nem um povo grande e abençoado a atravessar-lhe o caminho. Além do mais, ali estava um rei aflito, e prestes a dar-lhe até metade de seus tesouros.
Balaão, segundo suas próprias palavras, era o profeta dos olhos abertos. Mas, para mim, ele era o teólogo do olho grande e gordo: estava sempre disposto a corromper e a ser corrompido. Eis porque resolveu, apesar das relutâncias iniciais, atender à demanda final de Balaque.
Já que não podia levar a maldição a Israel, poderia ao menos trazer até Israel a maldição. A equação era bem simples. Sabendo ele que Deus tem um caráter justo e santo, ensinaria Balaque a tirar proveito dessa proposição. E, para tanto, o rei moabita não precisaria escrever monografia alguma; era só explorar a pornografia que estava ao seu alcance. Mesmo porque, aquele monarca medroso e bufão nenhuma capacidade acadêmica demonstrava ter.
Sim, tudo era muito simples. Mas a receita só Balaão possuía. Para amaldiçoar Israel, Balaque só precisaria espalhar umas prostitutas cultuais pelo arraial hebreu, e o problema estaria resolvido para os moabitas. Mas, para os israelitas, estaria só começando.
Foi o que aconteceu. As desavergonhadas, introduzidas sorrateiramente no acampamento do Senhor, puseram-se a induzir os varões hebreus a se prostituírem e a comerem alimentos sacrificados aos ídolos. De repente, aquele povo separado e santo em nada diferia das nações de Canaã. O episódio, que passaria à história como o Caso de Baal-Peor, custaria muito caro aos filhos de Israel. Num só dia, o Senhor matou vinte e quatro mil homens. O fato jamais seria esquecido. Séculos depois, ainda era mencionado pelos santos profetas como advertência à comunidade hebreia.
Balaão não foi o único a fazer teologia, nem a profetizar sob demanda. Seus discípulos e seguidores, igualmente irracionais em seu amor pelo ouro de Balaque, fazem-se moucos até mesmo à voz da jumenta. Não obstante, sempre acabam por encontrar generosos púlpitos e cátedras.
Nos domínios de Acabe, eram liberalmente pagos, a fim de profetizar o que o monarca queria ouvir. Nenhum deles tinha coragem, ou disposição, de dizer que o rei estava nu. Já em Judá, no tempo de Jeremias, achavam-se arrolados na folha de pagamento do funcionalismo público. E, na Igreja Primitiva, além dos imitadores de Balaão, havia também os nicolaitas, que, de paróquia em paróquia, iam teologizando por encomenda. Com mão certeira, semeavam o pecado, a rebeldia e a dissolução entre os santos.
Jesus odiava as obras dessa gente.
Hoje, esses tais obreiros podem ser contados aos milhares. Tanto aqui, como lá fora, comportam-se como os sofistas que, na Grécia antiga, eram tidos como inteligentes e sábios. Eles andejavam por toda a parte, discorrendo sobre os mais variados e ignorados assuntos. Um deles, que não entendia nada de guerra, propôs-se certa vez a ensinar estratégia a um experimentado general. Não é o que ocorre em nossos arraiais? Às vezes, surge, não se sabe de onde, um neófito com ares doutorais e que nunca pastoreou um rebanho, dizendo como se deve tanger o redil e tocar o aprisco. Mas, na verdade, o que mais querem é a lã das pobres e desamparadas ovelhas.
Eles não são nada baratos. Exorbitam nos cachês e carregam nas exigências. Por isso, sempre pregam o que os seus contratantes querem ouvir. Sabem que, se forem verdadeiros no púlpito, poderão sair de muitos templos como mentirosos. E esse risco não querem correr. Assim, deixam de ser homens de Deus para se fazerem homens do povo. Como abismo atrai abismo, também não vêem dificuldade em sustentar a iniquidade, desde que esta encha-lhes os bolsos.
E, assim, passam a vida a produzir uma teologia ímpia, mentirosa e sofismática. Aqui, esvaziam a divindade de Cristo. Ali, tiram a autoridade da Bíblia. Mais além, negam o arrebatamento da Igreja. Ainda, não satisfeitos, espalham entre o os santos costumes exóticos e detestáveis. Terminado o culto, vão embora cheios, deixando atrás de si um rebanho vazio.
Não fomos chamados a fazer teologia sob demanda. Convocou-nos o Senhor a proclamar a sua Palavra. E, para isso, temos de ser íntegros, corajosos e jamais perder o dom do amor. Quem ama, fala a verdade, pois uma mentira, bem trabalhada teologicamente, é bastante para levar todo um rebanho ao inferno.
Balaão era um profeta sagaz e um tanto matreiro. Se fosse apenas profeta, a desgraça não seria tanta. Acontece, porém, que o filho de Beor era ainda um teólogo competente. Torcendo um artigo de fé aqui, minimizando uma proposição doutrinária mais além, ia ele enchendo as algibeiras com o ouro dos incautos. E os seus arremedos, justiça seja feita, eram capazes de convencer até os mais avisados.
Embora domiciliado em Petor, às margens do Eufrates, fazia, vez por outra, uns volteios pelo Oriente Médio, a fim de oferecer serviços e préstimos. Ontem, tanto quanto hoje, havia sempre alguém querendo amaldiçoar alguém. E, para isso, estava disposto a pagar-lhe muito bem.
Enfim, o profeta Balaão teologizava sob demanda. Assemelhava-se ao escritor que, certa vez, recebeu a incumbência de escrever um artigo sobre uma polêmica autoridade. Ao receber o dinheiro, perguntou: “A matéria é a favor ou contra?”
Suas mandingas eram bem articuladas e certeiras. Amaldiçoou Balaão alguém? Amaldiçoado está! Foi por isso que Balaque trouxe-o de tão longe e inflacionou-lhe generosamente o cachê. Afinal, o rei moabita estava caído de angústias com a aproximação dos filhos de Israel que, desde o longínquo Sinai, marchavam resolutamente às suas portas. E, pelo ritmo de seu avanço, nenhum exército seria capaz de frear-lhe a andadura. Segundo imaginava, aquela gente, de tão numerosa, lamberia todos os recursos de sua terra. E isso ele jamais haveria de admitir.
Balaque bem sabia que Balaão era venal e sem caráter. Todavia, era competente no que fazia e tinha um preço até razoável. Além de venal, pagável. Não seria difícil contratá-lo.
O interessante é que Balaão possuía também um lado poeta e lírico que, elegantemente, deixa transparecer nas profecias que, por três vezes, profere sobre o futuro messiânico de Jacó. Ele sabia trabalhar tão bem as palavras, que Moisés foi inspirado a registrá-las no quarto livro do Pentateuco. Num dos trechos de seu maravilhoso e subido poema, chega a ser autobiográfico: “Então, proferiu a sua palavra e disse: Palavra de Balaão, filho de Beor, palavra do homem de olhos abertos, palavra daquele que ouve os ditos de Deus e sabe a ciência do Altíssimo; daquele que tem a visão do Todo-Poderoso e prostra-se, porém de olhos abertos: Vê-lo-ei, mas não agora; contemplá-lo-ei, mas não de perto; uma estrela procederá de Jacó, de Israel subirá um cetro que ferirá as têmporas de Moabe e destruirá todos os filhos de Sete” (Nm 24.15-17).
A ganância, contudo, veio a ter mais rimas que a poesia. Na verdade, Balaão não estava disposto a perder o ouro de Balaque; oportunidade como aquela não costuma repetir-se. Não é sempre que se tem um Êxodo pela frente, nem um povo grande e abençoado a atravessar-lhe o caminho. Além do mais, ali estava um rei aflito, e prestes a dar-lhe até metade de seus tesouros.
Balaão, segundo suas próprias palavras, era o profeta dos olhos abertos. Mas, para mim, ele era o teólogo do olho grande e gordo: estava sempre disposto a corromper e a ser corrompido. Eis porque resolveu, apesar das relutâncias iniciais, atender à demanda final de Balaque.
Já que não podia levar a maldição a Israel, poderia ao menos trazer até Israel a maldição. A equação era bem simples. Sabendo ele que Deus tem um caráter justo e santo, ensinaria Balaque a tirar proveito dessa proposição. E, para tanto, o rei moabita não precisaria escrever monografia alguma; era só explorar a pornografia que estava ao seu alcance. Mesmo porque, aquele monarca medroso e bufão nenhuma capacidade acadêmica demonstrava ter.
Sim, tudo era muito simples. Mas a receita só Balaão possuía. Para amaldiçoar Israel, Balaque só precisaria espalhar umas prostitutas cultuais pelo arraial hebreu, e o problema estaria resolvido para os moabitas. Mas, para os israelitas, estaria só começando.
Foi o que aconteceu. As desavergonhadas, introduzidas sorrateiramente no acampamento do Senhor, puseram-se a induzir os varões hebreus a se prostituírem e a comerem alimentos sacrificados aos ídolos. De repente, aquele povo separado e santo em nada diferia das nações de Canaã. O episódio, que passaria à história como o Caso de Baal-Peor, custaria muito caro aos filhos de Israel. Num só dia, o Senhor matou vinte e quatro mil homens. O fato jamais seria esquecido. Séculos depois, ainda era mencionado pelos santos profetas como advertência à comunidade hebreia.
Balaão não foi o único a fazer teologia, nem a profetizar sob demanda. Seus discípulos e seguidores, igualmente irracionais em seu amor pelo ouro de Balaque, fazem-se moucos até mesmo à voz da jumenta. Não obstante, sempre acabam por encontrar generosos púlpitos e cátedras.
Nos domínios de Acabe, eram liberalmente pagos, a fim de profetizar o que o monarca queria ouvir. Nenhum deles tinha coragem, ou disposição, de dizer que o rei estava nu. Já em Judá, no tempo de Jeremias, achavam-se arrolados na folha de pagamento do funcionalismo público. E, na Igreja Primitiva, além dos imitadores de Balaão, havia também os nicolaitas, que, de paróquia em paróquia, iam teologizando por encomenda. Com mão certeira, semeavam o pecado, a rebeldia e a dissolução entre os santos.
Jesus odiava as obras dessa gente.
Hoje, esses tais obreiros podem ser contados aos milhares. Tanto aqui, como lá fora, comportam-se como os sofistas que, na Grécia antiga, eram tidos como inteligentes e sábios. Eles andejavam por toda a parte, discorrendo sobre os mais variados e ignorados assuntos. Um deles, que não entendia nada de guerra, propôs-se certa vez a ensinar estratégia a um experimentado general. Não é o que ocorre em nossos arraiais? Às vezes, surge, não se sabe de onde, um neófito com ares doutorais e que nunca pastoreou um rebanho, dizendo como se deve tanger o redil e tocar o aprisco. Mas, na verdade, o que mais querem é a lã das pobres e desamparadas ovelhas.
Eles não são nada baratos. Exorbitam nos cachês e carregam nas exigências. Por isso, sempre pregam o que os seus contratantes querem ouvir. Sabem que, se forem verdadeiros no púlpito, poderão sair de muitos templos como mentirosos. E esse risco não querem correr. Assim, deixam de ser homens de Deus para se fazerem homens do povo. Como abismo atrai abismo, também não vêem dificuldade em sustentar a iniquidade, desde que esta encha-lhes os bolsos.
E, assim, passam a vida a produzir uma teologia ímpia, mentirosa e sofismática. Aqui, esvaziam a divindade de Cristo. Ali, tiram a autoridade da Bíblia. Mais além, negam o arrebatamento da Igreja. Ainda, não satisfeitos, espalham entre o os santos costumes exóticos e detestáveis. Terminado o culto, vão embora cheios, deixando atrás de si um rebanho vazio.
Não fomos chamados a fazer teologia sob demanda. Convocou-nos o Senhor a proclamar a sua Palavra. E, para isso, temos de ser íntegros, corajosos e jamais perder o dom do amor. Quem ama, fala a verdade, pois uma mentira, bem trabalhada teologicamente, é bastante para levar todo um rebanho ao inferno.